segunda-feira, 30 de março de 2009

Carcará, uma peleja acolá.

"Eita que Francisco tá magro que dói ! Tá parecenu um cabrito novo !", pensou Livramenta que tomava um café na casa do compadre Francisco. Mas Maria do Livramento da Anunciação não era mulher de guardar opinião, e tinha madeira naquela cara enrugada do sol, então não hesitou em dizer:
- Óia, cumpadi... quem sou eu pra dizê uma coisa dessa, né não ? Mas acho que o cumpadi tá fastioso demais, precisa é de cumê farinha, ficar forte.
- Dona Livramenta, e é tu que vai butá farinha no meu prato ? Num tenho mais mulhé pra cunzinhá pra mim não...
- Seu Chiiiicoooo... tu é véi desse jeito e num sabe nem assar uma piaba no espeto ? Mas num tô dizendo, mermo... Já derribô boi pelo rabo, mamou em peito de sereia, palitô dente de cavalo e vem me dizer que passa fome porque num tem quem cunzinhe pra tu ? Apois vamo fazer o singuinte: o cumpadi pesca que eu asso. Todo dia, viu ? Se me deixar na mão, conto pro povo todinho aquela história do carcará.
- Éééééguaaaa... ! Apois é assim, é ? Tá certo, tu vai ter peixe todo dia, até eu morrê.

A partir daquele dia, então, Francisco ia religiosamente às 5h da manhã com seu lampião e um pedaço de grude jogar sua vara de pesca no mar para garantir o almoço, senão lá ia a vila inteira saber da história do carcará, ia lascar tudo, ia ter que fugir pro interior.

Livramenta era mulher de palavra que tinha botado o marido mais macho que touro pra correr, só de roupa de baixo, pela rua, já no primeiro dia de casamento. Ouviam-se boatos de que seu filho homem já nasceu e saiu andando, e que a menina tinha o buraco do sexo tampado, que era pra cabra nenhum bulir com ela. Por essas e outras histórias que Francisco temia a boca de tal mulher, que fazia chover em pleno dezembro só de reclamar do calor e que tivera coragem em convidar para madrinha de sua filha Gercilândia, por ter dito que a menina ia nascer de 10 meses, gorda e saudável, o que realmente aconteceu.

Era domingo de manhã e Maria do Livramento já tinha terminado os afazeres, só faltava limpar o peixe, que Francisco estava demorando mais que o normal para trazer. Sem entender o porquê da demora, resolveu ir até a praia ver o que tinha acontecido e, talvez com sua boca de levar neve pro sertão, fazer cair do céu ou pular do mar um peixe do tamanho de um boi, porque, se dependesse de Francisco, só ia ter era piaba - e pro jantar. Chegou batendo os pés na areia quente, perguntando para um grupo de pescadores onde estava seu compadre, até perceber que o mesmo estava no meio da roda, segurando um peixe bonito de se ver, dourado à luz do sol, por pouco maior que o homem que o segurava.
- Viiiixi, cumpadi ! Gostei de ver ! Achei que tinha afrouxado ingual aquela veiz que tu se cagou todinho e borrou as calça com medo de um carcará que pousou baixo !

domingo, 8 de março de 2009

Jericoacoara, cogumelos e a princesa encantada.


Leônidas era um pouco medroso, mas nada que o impedisse de tomar uma dose adrenalina vez ou outra, ou, até mesmo, como estava prestes a fazer, de tomar uma dose de chá de cogumelo. O copo tremia em sua mão, cor de burro-quando-foge, com objetos não identificados boiando toscamente. Pensou em desistir, mas olhou para o lado e viu que seu amigo Lírio já virara o seu.


"Ok, vou tentar me controlar... CA-RA-LHO ! Minhas veias são cor-de-rosa neon !", delirou o Leônidas pós-cogumelo, já quase enlouquecendo sem saber o que fazer com tantos pensamentos, tantas idéias e tantas vontades. Queria pular no mar e no céu ao mesmo tempo, então resolveu correr sem rumo para o lado direito da praia, sendo seguido por um Lírio alucinado que gritava "JACKIE KENNEDY, MINHA MUSA ! CASE-SE COMIGO !" de 10 em 10 segundos. Foram correndo sem lenço nem documento até se surpreenderem com um farol listrado, em preto e branco, que se erguia morto à luz do meio-dia mas, que mesmo assim, iluminou mais ainda as idéias fluorescentes dos jovens psicodélicos.

- A princesa, cara... É por aqui que ela fica ! - disse Lírio olhando ao redor.

- Errr... hum... onde ?

Os dois desorientados não faziam a menor idéia de onde ficava a entrada para a caverna da princesa encantada, mas encontraram por sorte um guia que conduzia turistas à Pedra Furada, que fica mais adiante:

- Óia... vocês desce ali, tá vênu ? Aí chega lá embaixo e tem uma abertura, aí tem que adentrar de cóca.

- De que ?

- De cóca. De cócra. Abaixado, rapaizi. Se arribar bate a cabeça. - explicou o guia atormentado por estar dando muitas informações de graça.


Lá estavam. Uma abertura de um metro ou menos, com passagem para uma pessoa de cada vez e os dois mais agitados que siri em lata, imaginando que a princesa era gostosa e que eles iam dar uns catas nela e fazer um tour pela cidade encantada que se escondia depois do portal no qual a moça ficava. Ingênuos, no mínimo. Drogados ? Até demais. Só que não custava nada ir conhecer um lugar já desbravado, que parecia não oferecer perigo nenhum. Então Lírio, que ainda recitava versos para Jackie Kennedy, se calou e entrou 'de cócoras' na caverna, seguido de Leônidas. Só os dois.


Os dois amigos, apesar de muito diferentes entre si, entraram em sintonia quanto ao efeito do chá e começaram a ter as mesmas alucinações. Ao caminhar pela caverna - que apesar do teto baixo exigia uma boa caminhada para chegar ao fim - começaram a sentir que o tempo esfriava a cada passo e que nas pedras desconexas que formavam as paredes ia surgindo uma coisa branca, diferente... era neve. Desviando de estalactites e estalagmites de gelo e devido ao frio, a caminhada foi se tornando mais árdua, mas, sem pensar em desistir sequer um momento, chegaram ao clímax da missão: no fim da caverna, num umbral repleto de cristais, se avistava o colossal, dourado, mágico e inacreditável portão. Sem ação, tudo que Lírio e Leônidas puderam fazer foi caírem sobre seus joelhos e esperar o que já imaginavam que estaria por vir.


Serena, cor de ébano, olhos melancólicos. A face pura e inocente que se perdia em meio a um tronco nu e solitário de humana acompanhado de uma calda dourada e resplandecente de cobra chegou longe de despertar o tesão desesperado e adolescente dos garotos incrédulos que pensavam ter diante de si a visão de algum orixá ou divindade de qualquer religião que fosse - existente ou não. Dos seus cabelos longos surgiam flores do campo amarelas e seus dedos quase negros e compridos seguravam a grade como em pedido de socorro. Em um movimento difícil e sôfrego de realizar, os lábios ternos de índia se entreabriram e sussurraram um som quase inaudível:

- Sangue... por favor...

- Cara, a gente precisa correr. Elas quer nos seduzir para nos matar. ELA QUER SANGUE ! - gritou Leônidas alucinado. Porém, Lírio estava hipnotizado pela beleza mágica da jovem que pedia ajuda e, sem pensar, procurou ao seu redor um objeto cortante. Surgiam pingüins, insetos desconhecidos e flores por todas as partes. Uma trepadeira que ia nascendo do teto da caverna alcançou o chão e prendeu os pés de Leônidas, que devido ao cansaço não conseguiu se desvencilhar ou correr. Lírio, encantado, arrancara um pedaço de gelo da parede e fizera um corte vertical em seu pulso esquerdo.

- E agora, minha senhora ? Tenho aqui meu sangue. Devo morrer ?

- Não... eu... uma cruz em meu tronco. Desenhe... uma cruz... - chorava palavras, a estranha. Lírio, então, passou os dedos médio e indicador pelo corte que jorrava sangue e, sem muito pensar, se aproximou da grade dourada, tocando gentilmente o colo da princesa encantada e desenhando em seu dorso uma cruz.

- E agora ? Estou ficando fraco, o meu sangue... ele... ele vai acabar. Você vai me salvar, princesa ? - nesse mesmo momento, da cruz de sangue surgiu uma luz inebriante e podia-se ouvir do interior do portão melodias de harpa, vozes em um idioma desconhecido, palmas, canções, cavalos galopando e toda a sorte de sons de uma cidade em festa. Do interior da caverna, misteriosamente, surgiu um homem de nariz adunco e roupa de lacaio que trazia consigo um chaveiro repleto de grandes chaves douradas e, com uma delas, abriu o portão monumental. A princesa, porém, que vestia apenas um manto acobreado e bordado em pérolas, virou as costas e caminhou em direção à cidade, como se pedindo que a seguissem. Lírio, pálido e com o sangue já em falta, não conseguiu se mover para adentrar a cidade mágica, e desmaiou. Para sempre. Leônidas já havia sido sufocado pela trepadeira que surgira do nada. Agora, a cidade comemorava a volta da belíssima índia pela qual se apaixonara seu príncipe que, até então, vivera só de lágrimas de saudades e dor. "Pobres garotos... o chá que beberam sequer fez efeito.", riu consigo o lacaio ao fechar o portão e se juntar a um grupo que dançava e bebia na entrada da cidade.

Créditos: Ao Lucas (pelo nome Leônidas) e aos nativos de Jericoacoara (por espalharem a história da Princesa Encantada, da qual eu gosto tanto).