terça-feira, 4 de março de 2008

Cabaré cearense - Cabide de puá velho.

Greice acordou e lavou o rosto na bacia, se olhando no espelho de sua penteadeira. Olhou ao redor e analisou cada objeto... Tudo da pior qualidade. O rouge estava aos pedaços, sua colônia tinha um frasco tôsco e velho, seus brincos eram feios - meras bijuterias que eram motivo de piada - e suas meias soltavam fiapos. O motivo disso tudo era o pouco que ganhava, pois, vivia de trocados e favores da patroa.
Magra ao extremo, foi apelidada de Cabide. Tinha um nariz grande e desproporcional aos seus lábios demasiadamente finos. Seu único atrativo físico era a cor dos seus olhos, um azul que deixava tímido até mesmo o mais vasto oceano, olhos que herdara de algum parente distante vindo da Europa. Grampos não prendiam por completo seu cabelo arrepiado.
"Oh... Malditas doses de uísque !", pensou ela ao sentir seu estômago embrulhar. Tinha sido mais uma noite DAQUELAS, com homens gordos e suados contando piadas em voz alta e exalando um hálito podre de cebola. "Preciso sair dessa vida libertina... Não me acho merecedora de tanto mal.". Uma lágrima desceu de seu olho esquerdo, misturada com maquiagem preta, deixando-a com um aspecto imundo. De repente, risadas, tambores, cornetas e vozes cantando quebraram o silêncio. "Veja ! É o Circo de Natal !", gritou alguém na rua. Ao ouvir isso, Greice correu para a janela para ver o circo que passava. Avistou palhaços alegres e bailarinas lindas, todos com roupas multicoloridas cheias de tule e paetê. Sentia entre eles uma harmonia fantástica, seus olhos brilhavam juntos como se fossem uma família.
Pensar em família a lembrava de sua mãe, a qual abandonara em Crateús dizendo que ia pra capital ganhar dinheiro e que voltaria para construir uma casa... Pobre velha ! Mal se banhava sozinha e fora deixada aos cuidados de seu irmão, que era pouco mais sadio que ela. Mas Greice sabia o que fazia, quanto a isso. Se era comprada por homens imundos, era para poder dar conforto a sua mãe.
Despertou dos pensamentos e voltou sua atenção para a rua. Começou a se sentir maravilhosamente bem observando o circo e a alegria com que todos dançavam. Eis que sentiu um impulso louco e desceu correndo as escadas. Alcançou a rua a tempo de se meter entre os alegres personagens, sem nem saber porquê o fazia. Só sabia que nunca sentira algo tão bom florescer de seu coração.
- Vem conosco, - disse um palhaço que a vinha observando - no circo és igual a todos e mesmo assim especial.
Os meses passavam e entre o frasco tôsco de colônia e o espelho da penteadeira surgiam teias de aranha. E se, por acaso, algum cliente perguntasse onde estava a Cabide, alguém sempre respondia:
Greice agora é do mundo.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Cabaré cearense.

É como se eu as visse debruçadas nas janelas. Sim, aquelas janelas bem antigas, com vasos repletos de brincos-de-princesa. É também como se eu as visse fumando cigarros no sol fervilhante do meio dia, com grampos no cabelo e resquícios da maquiagem pesada da noite anterior.
Clotildes, Matildes e algumas até mesmo com nome de artista de cinema. Nome artístico, é claro. Nomes que, no interior de onde vieram, jamais conseguiriam ser pronunciado entre tantos "oxente" e "cabra véi". Evitavam usar tais gírias, obviamente. Afinal, quem não queria ser como as deusas da bossa ? Aquelas cariocas douradas que chiavam, usavam roupas ousadas e desfilavam no calçadão de Copacabana com seus maiôs modernos... E elas, meras nordestinas que estavam "na vida" por ter como outra opção ter ficado no interior e jamais arriscado a vida na capital.
E tinha Ela. A Abelha Rainha, a Entidade, a Suprema. Ela que usava perfumes franceses trazidos de presente pelos empresários de mais fino-trato: Médicos, advogados e herdeiros de grandes fortunas. Era uma empresária de sucesso, trazia as meninas de Juazeiro do Norte, Quixeramobim e outras localidades "fim-de-mundo" do tipo. As trazia e as transformava, aparentemente, em damas dignas de servir a alta-sociedade.
Durante o dia, nesse calor cearense e infernal, elas se escondiam por trás das janelas enquanto limpavam o cabaré. Lustravam o chão para que não brilhasse menos que os sapatos pretos dos clientes e tiravam o pó de cada garrafa de licor, uísque e cachaça nas prateleiras.
É claro, que Ela não fazia nada o dia inteiro, além de deitar com rodelas de pepino nos olhos e ouvir Chico na vitrola. Se identificava com Geni, assim como todas as prostitutas de luxo devem se identificar, diga-se de passagem. Não pensava merecer que jogassem pedras nela, apenas entendia que os outros, por não entenderem suas necessidades e os fatores que a levaram para aquela vida, tivessem preconceito. Estava acostumada a ser apontada quando passava na rua: "Olha, é ela !", "Mas não tem vergonha na cara, mesmo !", "Filha, jamais chegue perto dessa mulher da vida !"
E quando chegava a noite... Ahhh ! Aquilo ali ficava uma maravilha ! As meninas que corriam para acender as luzes e ir pro quarto se lavar e se maquiar. Exageravam no rouge, isso dava um ar de européia, achavam elas. O batom, nem se fala... Um cor que inspirava o sexo, a paixão.
Então os homens começavam a chegar. Colocavam seus chapéus e paletós no cabide que ficava ao lado da porta, do lado de dentro, exibindo suas impecáveis camisas brancas de brim, que, mais tarde, ficariam com cheiro de colônia de lavanda e marcas do batom vermelho que inspira sexo. Sentavam para assistir o show de dama mais bela, acendiam seus charutos e esperavam que as meninas viessem sentar em seus colos. Uns tinham suas favoritas, que se arrumavam especialmente para serví-los. Logo se ouviam os saltos subindo as escadas, as "moças" rebolando o máximo que conseguiam a cada degrau e gritinhos alegres de mulheres bêbadas.
Enfim, era suor, bebidas e fumaça de charuto a noite inteira. No dia seguinte ? Bem... No dia seguinte as mesmas rodelas de pepino e o chão lustrado.